Pareto, Walras, Pigou e os Aplicativos Sociais P2P

Fato: O uso dos aplicativos sociais tornou-se ubíquo no cotidiano urbano do século XXI. [...]

Fato: O uso dos aplicativos sociais tornou-se ubíquo no cotidiano urbano do século XXI.

Reflexão: Tal ubiquidade dos aplicativos sociais é realmente eficiente?

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Viajando pela capital francesa, pela região catalã e pelos cantões suíços, imaginei-me em um daqueles charmosos cafés, em um final de tarde com chuva, conversando com Pareto, Walras e Pigou sobre o impacto dos aplicativos sociais nas perspectivas dos seus teoremas sobre eficiência, equilíbrio geral e externalidades - três conceitos primordiais na economia clássica.

Sonho juvenil! Afinal, Vilfredo Pareto, Léon Walras e Arthur Pigou foram proeminentes economistas nascidos em meados do século XIX. Viveram os anos dourados do final dos anos 1800, testemunhando o impacto enorme da livre iniciativa capitalista na sociedade européia e, por meio de seus textos, delinearam os fundamentos do pensamento econômico para gerações futuras, inclusive a minha.

A conversa inicia-se com um breve resumo sobre como estes clássicos fundamentos econômicos se apresentam e se relacionam.

Pareto se adianta a comentar:

“_ A eficiência de Pareto refere-se ao contexto específico da alocação de recursos, onde é impossível qualquer melhoria na situação de um agente sem a piora da situação de outro agente econômico. Uma economia se torna eficiente justamente quando nenhuma troca adicional seja necessária entre os agentes já satisfeitos com suas escolhas e quando as possibilidades de produção tenham sido já otimizadas pela tecnologia disponível.”

Ciente da tecnicidade do comentário, busco resumir em poucas linhas mais gerais: “_ A eficiência de Pareto, portanto, significa que ninguém pode melhorar suas escolhas sem impacto negativo nas melhores escolhas dos outros participantes no mercado.”.

Walras continua:

“_ O equilíbrio geral assegura a existência de um conjunto de preços que possibilite a igualdade entre oferta e demanda para todos os bens em um determinado mercado. Em teoria, o commissaire-priseur (leiloeiro) anuncia o prix crié au hasard (preço de leilão), recebe os planos de oferta e de demanda e assegura que nenhuma troca ocorra antes que todos os preços de equilíbrio tenham sido definidos em um processo denominado tâtonnement (tateamento). Com total simetria de informações e ausência de custos de transação, define-se o preço de equilíbrio geral para cada uma das mercadorias, onde não há qualquer excesso de demanda ou de oferta.”

Novamente, ciente do risco de ser julgado petulante, insisto em resumir o conceito em termos mais coloquiais: “_ O equilíbrio geral refere-se ao conjunto de preços livremente definido de modo que toda demanda seja satisfeita e toda oferta seja plenamente realizada.” Walras, para meu alívio, acena levemente em aprovação.

E, então, Pigou complementa a visão inicial sobre os instrumentos econômicos:

“_ As externalidades são efeitos colaterais - positivos ou negativos - causados por decisões sobre terceiros não envolvidos no processo, nem tampouco considerados pelos agentes tomadores das decisões. Externalidades negativas causam danos involuntários a terceiros, sem que os agentes responsáveis por tais impactos tenham qualquer ônus ou penalidade. É natural que externalidades nunca resultem em contextos sociais ótimos, pois surgem a partir de falhas em direitos de propriedade, ignorados no processo decisório, criando dilemas políticos ou éticos. A solução, por vezes, está na tributação dos responsáveis pela geração da externalidade.”

Há um certo silêncio embaraçoso quando questiono sobre a utilização destes conceitos na avaliação do uso dos aplicativos sociais P2P (peer-to-peer) e seus impactos nas comunidades locais. Percebo, em tempo, que, vivendo até a primeira metade do século XX, Pareto, Walras e Pigou jamais imaginariam tal possibilidade.

Explico em poucas palavras: “Aplicativos sociais P2P de transporte e hospedegam facilitam o encontro entre oferta e demanda. Aplicativos de transporte permitem a um indivíduo acessar motoristas disponíveis em certo raio de distância, a um custo financeiro geralmente inferior aos táxis tradicionais. Aplicativos de hospedagem permitem a um indivíduo acessar locais disponíveis em região desejada, a um custo financeiro geralmente inferior aos hotéis tradicionais. Ambos com facilidades no uso de meios de pagamento e possibilidades imediatas para avaliação da qualidade do serviço. Simples assim!”

Pareto, Walras e Pigou se sentiram, enfim, confortáveis para refletirem sobre suas teorias econômicas, celebrando as maravilhas tecnológicas dos tempos futuros.

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Iniciamos, assim, com nossa análise dos aplicativos sociais P2P de transporte, cujas principais ideais estão resumidas logo abaixo:

Imaginemos, por simplificação, o gasto mensal de um indivíduo equivalente a CHF 1000 com táxi tradicional em suas múltiplas necessidades de transporte em seu cotidiano em uma pequena cidade, ainda com seus ares medievais do século X. Imaginemos ainda que tal indivíduo acesse sempre o mesmo motorista de táxi, transferindo mensalmente CHF 1000. Tal motorista, após pagamentos dos impostos devidos, gasta tal montante em suas compras diversas de bens e serviços na mesma comunidade pitoresca e tranquila. Espera-se, naturalmente, que, novamente após pagamentos dos impostos, os ofertantes de tais bens e serviços também gastem seus respectivos montantes em suas compras diversas de bens e serviços na mesma comunidade. E, assim, sucessivamente.

Então surgem os aplicativos sociais, celebrados por alguns, temidos por outros. Pode-se esperar uma redução no gasto mensal do mesmo indivíduo - por hipótese, digamos que o montante total seja reduzido para CHF 850. Trata-se de uma esperada captura de excedente do produtor pelo consumidor, diante do aumento da competição na oferta de transporte. Imaginemos, por um instante, que tal indivíduo desloque CHF 450 para o mesmo motorista de táxi tradicional (relutante em adotar qualquer aplicativo) e CHF 400 para um novo motorista com aplicativo social. Assumindo que ambos ainda residam na bucólica cidade medieval, ainda assim temos uma extração de valor baseada na aplicação de uma taxa de administração pela companhia global responsável pelo aplicativo - estimemos em 25%, resultando em CHF 100 extraídos da transação. Este montante extraído reduz o bem-estar geral da pequena comunidade ao reduzir o efeito multiplicador da moeda na região - algo potencialmente ainda pior, caso o novo motorista seja um forasteiro, destinando seu rendimento para consumo em outras localidades.

Imaginemos, por simplificação, certa neutralidade do impacto em trânsito. De um lado, podemos imaginar a redução desta externalidade negativa na comunidade local, assumindo que indivíduos deixariam de usar seus veículos privados para acessarem motoristas profissionais com seus aplicativos sociais. De outro lado, entretanto, assumindo que motoristas profissionais de outras localidades também se interessem pela população da pequena cidade medieval, teríamos aumento desta externalidade negativa relacionada ao trânsito destes veículos forasteiros.

Pode-se ainda visualizar o contexto na ótica dos tradicionais motoristas de táxi. Com seus rendimentos reduzidos, serão, provavelmente, obrigados a reduzirem seus padrões de consumo e, potencialmente, a se mudarem para casas cada vez mais periféricas. No caso extremo delineado com a invasão de motoristas forasteiros, também comerciantes locais sofreriam muito com queda de faturamento, gerando efeito negativo multiplicador na pequena cidade medieval.

Pausa para croissants.

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E todos prontos para análise dos aplicativos sociais P2P de hospedagem, cujas ideias também resumo abaixo:

Imaginemos agora que, novamente na pequena comunidade medieval, um conjunto de 100 indivíduos visite mensalmente a cidade, gastando CHF 10.000 apenas com tarifas em hotéis tradicionais distribuídos pela alameda principal. Além disso, gastando CHF 50.000 em diversos bens e serviços ofertados pelos estabelecimentos locais. Após pagamentos dos devidos impostos, estes dois montantes somados são destinados a consumo e a investimento em uma espiral sucessiva já descrita anteriormente.

Então surgem os aplicativos sociais, novamente celebrados por alguns, temidos por outros. Pode-se, mais uma vez, esperar uma redução no gasto mensal do mesmo conjunto de pessoas com diárias dos locais reservados - por hipótese, digamos que o montante total seja reduzido para CHF 8.000. Trata-se de uma esperada captura de excedente do produtor pelo consumidor, diante do aumento da competição na oferta de espaços para hospedagem - neste caso, ainda mais estimulada pela oferta de espaços solos, ou seja, apartamentos sem toda infraestrutura hoteleira. Imaginemos, agora, que tal conjunto de pessoas desloque CHF 4000 para os mesmos tradicionais hotéis locais (relutantes em adotarem qualquer aplicativo) e CHF 4000 para proprietários dos novos espaços com aplicativo social. Assumindo que tais proprietários também residam na bucólica cidade medieval, ainda assim temos uma extração de valor baseada na aplicação de uma taxa de administração pela companhia global responsável pelo aplicativo - estimemos em 25%, resultando em CHF 1000 extraídos da transação. Este montante extraído reduz o bem-estar geral da pequena comunidade ao reduzir o efeito multiplicador da moeda na região - algo potencialmente ainda pior, caso os proprietários dos novos espaços sejam forasteiros, destinando seus rendimentos para consumo em outras localidades.

Certamente os proprietários dos hotéis tradicionais observam forte queda em seu faturamento mensal, reduzindo sensivelmente sua capacidade de otimização de lucro. Alguns hoteleiros, inclusive, incapazes de competirem no novo patamar de preços, serão obrigados a encerrarem suas atividades, concluindo, por vezes, trajetória familiar secular no ramo. Com menor faturamento, imaginando ainda certo espaço para ganho de produtividade operacional que resulte em redução de custo operacional, tais hoteleiros tradicionais reduzirão o nível de serviço de seus estabelecimentos, muitas vezes resultando em desemprego de colaboradores. Outros hoteleiros mais ágeis podem ser capazes de definirem novo posicionamento, por exemplo, voltando suas operações para nichos pouco explorados pela concorrência na região e/ou buscando selos internacionais de distinção. De qualquer modo, a piora da situação dos hoteleiros não seria o principal objeto de análise de nosso trio de valiosos economistas.

O impacto principal dos aplicativos sociais P2P de hospedagem está na inevitável especulação imobiliária causada pelo aumento artificial da demanda por espaços em regiões de interesse de massas de turistas em busca do melhor custo-benefício. O encontro romântico entre um morador local interessado em rendimento extra e um turista descolado interessado em seu lar durante alta temporada pode até ter sido o início da jornada, mas certamente não será a narrativa comum. Moradores locais terão dificuldade em conviverem com a inflação de preços de seus imóveis, revertida gradualmente em aumento dos impostos prediais, das tarifas sobre utilidades públicas e dos preços dos bens e serviços na vizinhança interessada no potencial econômico dos turistas. Até mesmo a existência de cozinhas nos apartamentos transacionados parece causar transtorno ao deslocar turistas para os pequenos mercados locais, ao invés de levá-los para os bares e restaurantes da bucólica cidade.

Ao longo do tempo, incapazes de arcarem com o novo patamar de preços da vizinhança disputada por turistas, diversos moradores locais, serão, provavelmente, obrigados a se mudarem para casas cada vez mais periféricas, abandonando lares familiares seculares. Pequenos comerciantes locais sentirão saudades de seus clientes preferenciais e habituais, e terão poucos incentivos para manterem suas tradições em transações rápidas, pasteurizadas e únicas com turistas sem nomes e sem rostos conhecidos. Dialetos locais serão substituídos por alguma variação, eventualmente ininteligível, do idioma inglês. O comércio tradicional se transformará cada vez mais em lojas de bugigangas made in China. Pensamentos e ações xenófobos florescem novamente nesta região tão desgastada por guerras durante milênios.

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Mentes pensativas...

Walras, estupefato, rompe o silêncio:

“_ É plenamente possível a existência de um equilíbrio geral com a chegada dos aplicativos sociais P2P de transporte e hospedagem, naturalmente com deslocamento dos preços de equilíbrio e também dos excedentes do consumidor e do produtor, com vantagens na captura de valor pelo consumidor em detrimento dos ofertantes dos serviços. Os aplicativos sociais P2P trazem muito mais simetria de informações entre demanda e oferta.”

Pigou, reflexivo, observa:

“_ Enfatizo que parecem ser severas as externalidades negativas sobre os tradicionais habitantes daquela pequena comunidade. Talvez haja compensação suficiente em alguma modalidade tributária que transferisse renda dos usuários e da empresa proprietária dos aplicativos sociais para os habitantes locais. Talvez as próprias empresas proprietárias dos aplicativos sociais encontrem algumas soluções compensatórias com visão de longo prazo, tanto pela extração de riqueza da comunidade local, como pelo impacto social e econômico no cotidiano dos seus habitantes.”

Pareto, pragmático, concorda com ambos:

“Concluo que o equilíbrio geral não é eficiente, justamente pelas externalidades negativas que perturbaram o cotidiano dos habitantes locais. Tenho também sérias dúvidas sobre quão exequível seria qualquer movimento por parte das autoridades locais ou quais seriam os incentivos para uma ação compensatória por parte das empresas digitais globais.”

Pigou ainda reflete sobre outra perspectiva do panorama analisado:

“_ Tenho também receio sobre a potencial concentração de riqueza nas regiões sedes das empresas proprietárias dos aplicativos sociais, em detrimento do empobrecimento cultural e financeiro das comunidades locais em regiões muito assediadas por usuários dos aplicativos. Isso aumentaria ainda mais o rancor local contra os movimentos de globalização e, até mesmo, contra o mítico Vale do Silício.”

Walras também amplia sua visão sobre equilíbrio geral do contexto em pauta:

“_ Penso sobre a lógica dos reais estímulos existentes para eventuais práticas anti-competitivas (dumping, por exemplo, onde o preço situa-se abaixo do custo da oferta) por parte das empresas globais de aplicativos sociais P2P de transporte e hospedagem, em consonância com as contemporâneas teses de network effects (efeitos de rede), segundo as quais, mesmo com prejuízo e cash burning (geração negativa de caixa), compra-se rapidamente volume de usuários com preços baixos muito agressivos e massivas ações de marketing em uma corrida acelerada do tipo The Winner Takes It All. Tais estímulos mudariam ainda mais o novo status quo no âmbito da pequena cidade medieval.”

Pigou pede ao garçom uma Soupe à l’oignon gratinée acompanhada de uma desejada taça de Bonnes-Mares para ajudar a digerir tantas novidades, e demonstra certa surpresa ao saber que o bistrô serve apenas Baba Ghanoush e Coca-Cola. Com seus olhos opacos e respiração ligeiramente ofegante, Pareto parece refletir sobre as idílicas vilas da Emilia-Romagna e Toscana. Resignado, Walras parece até mesmo aliviado em ter morrido em um hospício suíço no início do século XX.

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Moral: O turismo é positivo para o bem-estar de quem viaja e daqueles visitados, mas a massificação desordenada do turismo parece ultrapassar o equilíbrio ótimo, tornando-se predatório e causando sérios transtornos aos habitantes locais, que eventualmente reagem com violência. A inovação deve ser sempre celebrada como fonte de aumento de produtividade e bem-estar social, mas a disseminação de inovações ambíguas para usuários alienados tem resultados inesperados, nem sempre positivos a todos, requerendo olhar atento das autoridades governamentais para o marco regulatório.

Extrapolação absurda: O processo de marginalização social dos habitantes locais, a padronização global dos usos e costumes, a universalização do idioma inglês, a profusão de dispositivos digitais e a pasteurização do comércio encontraram a imagem mais realista de Paris justamente no Epcot Center.

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Daniel Augusto Motta, PhD, MSc

Fundador e CEO BMI Blue Management Institute

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